A Mãe de Todas As Mentiras
Asmae ElMoudir, é uma diretora marroquina, nascida em 1990. O segundo documentário da cineasta, “A Mãe de Todas As Mentiras”, incorpora discussões sobre como foi e é viver no Marrocos, tendo como eixo as vivências de diversos membros da família da cineasta. A data também é importante, uma vez que a produção revisita os ecos e impacto dos protestos de 1981 no país africano, o qual gerou uma discrepância entre os relatos da população e a declaração oficial do governo.
Posicionado o panorama traçado pelo filme, existe um interesse maior aqui em explorar a vazão performática do documentário e abordar este assunto, não de uma forma frontal ou didática, mas sim reflexiva e incidental, onde os atritos pessoais, desentendimentos e discordâncias são usados para posicionar um discurso que é ao mesmo tempo, expressivo e inflamado, assim como íntimo e metafórico.
As inclinações do filme posicionam o filme de maneira convicta em um modo documental, que tem sido mais frequente ao longo do tempo, e gerado reconhecimento global. Falando de reflexivo/performático, não faltam exemplos como “O Ato de Matar”, “A Imagem Que Falta”, “O Botão da Pérola” e “Tower”, só para citar alguns exemplos que tiveram muita rodagem no circuito e premiações. Esses filmes são notórios por utilizar de meios tele dramatúrgicos de diferentes formas e métodos mnemônicos, seja pela nova encenação de acontecimentos passados pela interpretação teatral, o uso de bonecos e arquivos, ou da estilização pela animação. É por via destes recursos que é montado o discurso.
Nele, ElMoudir coloca-se em um papel de narradora e articula reflexões, não restringindo a possibilidade de um certo lirismo pela forma que imagina situações e lança para o espectador certas figuras de imagem mediante a palavra, porém também pontua acontecimentos de forma sóbria. É também uma personagem que se coloca no meio da convulsão social entre um país e uma família fragilizada.
A junção destes dois elementos, que não se atropelam, apesar de existir uma coerência visual, vai ressaltando a engrenagem desses elementos mais criativos e de ordem artística, para um discurso universal, explicitando as problemáticas e eventualidades de pessoas que convivem rotineiramente, mas que carregam mágoas, cicatrizes e ideologias.
Egili - Rainha Retinta no Carnaval
Antes de comentar propriamente sobre o filme, preciso revelar algo. Tradicionalmente, ao longo das minhas experiências como espectador do Festival do Rio, assisti a filmes que não constavam originalmente na minha programação e que não recebem um grande holofote, seja de grandes festivais de cinema. Calhou o destino que antecipasse a sessão que seria a minha escolha inicial. Dito isso, cheguei de gaiato puramente pelo interesse temático em ver uma passista como personagem de uma abordagem documental, selecionado em uma categoria na qual, raramente costumo contemplar, que é a dos Itinerários Únicos.
Falando do filme em si, Egili Oliveira é uma passista veterana e absorve o carnaval com toda garra, hoje representando a Escola de Samba de Vigário Geral, da Série Ouro. Dirigido pela alemã radicada no Brasil, Caroline Reucker, monta um trabalho de pequenos recortes e momentos para que Egili possa situar e reverberar questões pertinentes e atuais da sociedade brasileira, como o colorismo, o que faz um trabalhador do carnaval, depois que acaba o carnaval, quais são os processos, quais pessoas fazem parte desse processo e o impacto cultural durante o carnaval por uma escola de samba da Série Ouro, que não está entre as principais escolas do país. Atrativos não faltam.
Todavia, os pequenos momentos de Egili parecem ser distribuídos de forma até mesmo aleatória, pois certos posicionamentos mais contundentes e afirmativos da passista, parecem se diluir em situações que poderiam até apontar para a sensibilidade, referencial íntimo, mas que parecem mais situações isoladas que não se comunicam e parecem explicitar a relação voyeurística para com o espectador tão somente.
A catarse e a identificação parecem nunca chegar.
Os Impactados
Lucia Puenzo, pode ser um nome familiar para muitos espectadores brasileiros, responsável por assinar a cadeira de direção de "XXYl", um filme amplamente visto e comentado pelos espectadores brasileiros e com alcance da Netflix. Agora, com seu novo filme “Os Impactados”, recém exibido no Festival de San Sebastián, tenta repetir a dose.
Se a ideia da produção parece particular e promissora, com a missão de uma eventualidade rara, inusitada e impressionante como ser atingido por um raio dramaticamente, as expectativas caem por água abaixo, por uma repetição cíclica de tendências, derivações de outras obras que se escoram no sobrenatural e instrumentalizam isso nas relações interpessoais, e, sobretudo amorosas.
A tentativa de extrair um peso e o simbolismo da natureza, vai muito pelo som e não são poucas as cenas estrondosas e impactantes, ao ponto de alguns espectadores tomarem genuínos sustos. Essa força exponencial do som não se traduz na dramaturgia, entre desenvolvimentos lacônicos e percursos que parecem pouco lapidados e se entrega a uma observação passiva.
O subtexto, os pormenores, a construção da tensão e os simbolismos extraídos pela imagem são escamoteados por uma duração que vai se prolongando e desenvolvendo uma relação de tentar afirmar certas emoções e perspectivas, só que pouco é genuinamente dito.
All Of Us Strangers
Um dos filmes mais aguardados e comentados do festival, que geraram inúmeros comentários e pedidos. E acho que, infelizmente, desponta como a grande decepção da temporada para mim, apesar de existir um alicerce aparentemente forte.
O filme deriva de "Strangers" de Taichi Yamada, que também foi adaptado pelo célebre diretor japonês Nobuhiko Obayashi, com o título em inglês de "The Discarnates". A premissa de um homem de meia-idade, frustrado profissionalmente, fragilizado, solitário e mal resolvido com a sua própria família, e que é surpreendido por um relacionamento, inicialmente estranho, à sua porta.
Apesar da plasticidade estética que investe em cores vibrantes, que ora ornam por um tom azulado, ora púrpuro, cenas de balada noturna, uma utilização expressiva e chamativa de um cenário que utiliza das setas do elevador e faz inferências sugestivas, a ideia de utilizar metáforas visuais, como a vista subjetiva de uma janela em movimento que passa por vultos, cria uma certa distinção visual.
Mas Haigh, parece fragilizado por um texto altamente expositivo, e evidência conflitos batidos que pouco revelam nuances, particularidades e a intensidade emocional que se projeta por algumas das imagens, mas que na costura dentre as interações e a revelações emocionais, sedimentam um lugar-comum e por mais que existam as relações perturbadoras da saúde mental e a ideia de dois indivíduos debilitados, não se sente e muito pouco se vê, e o terceiro ato parece jogar contra essa intencionalidade do filme, que faz muita força para ser sutil, mas se ausenta de sutileza em uma abordagem fria e exibicionista.
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